quarta-feira, março 09, 2005

Marnie, Confissões de Uma Ladra

Na minha adolescência, quando estava descobrindo poemas e poetas, confundia o Dalton Trevisan com o Lauro Trevisan.

Sim, eu tenho muita vergonha de assumir isso assim, em público, mas é verdade.

Depois de um tempo, até pelas críticas, descobri que eram duas pessoas diferentes, mas já estava naquela fase de hum... um dia compro um livro do Dalton pra conhecer... mas sempre voltava para casa com um Drumond ou Quintana básicos. Puro medo de arriscar.

Semana passada finalmente, li um livreto do Dalton Trevisan. Que porrada eu levei. Primeiro porque eu me toquei que nunca havia lido antes. Sofri. Trinta e um anos nas costas, vividos sem Dalton Trevisan, sem a sua síntese. Um homem e uma poesia, sintéticos. Segundo porque é impossível lê-lo sem tomar muita porrada. Porrada mesmo, física, quase jorrou sangue do meu supercílio no quinto poemeto de quatro linhas.

Assustada, a velha pula da cadeira, se debruça na cama:
- João. Fale comigo, João.
Geme fundo, abre o olhinho vazio, um palavrão:
- Bruuuxa... Diaaaba...
- Ai, que susto. Graças à Deus.

Tristeza é ver florindo o vasinho de violeta no quarto da filha morta.


Mais uma vez por acaso, rebugenta pelo dia internacional da mulher, que eu acho uma boçalidade sem tamanho, me deparo no site paralelos.org
com um mulher chamada Ivana Arruda Leite que escreve textos maravilhosos e que eu nunca tinha ouvido falar. Li tudo que eu encontrei na internet dela, no blog, num outro site literário, se encontrar mais eu leio e vou comprar os livros. Vejam isso:

A CAIXA VAZIA

Afogados neste aquário, Ofélia e eu andamos de um lado pro outro entre bibelôs, panelas, artigos de limpeza, calcinha pendurada no box. O que é o casamento senão uma caixa vazia com tudo dentro?
Na churrasqueira, um marido girando no espeto enquanto a mulher vai ao forno com tomate na boca. Por sorte mantiveram-me a certa distância da brasa. Ofélia fica linda com esta peruca de fios de ovos.
- Me empresta seus óculos - ela pede ? minha vista tem piorado muito nos últimos tempos. Quando subir me leve um copo d?água, mas não acenda a luz, por favor.
Vinte anos tentando achar o pijama no escuro.
- Trouxe a água?
Quando eu me deitar, a Princesa ganirá. A cadela insiste em deitar no meu lugar. Tento me encaixar sem esmagar suas frágeis patinhas.
A mesa de jantar foi presente de um tio.
- Entre as cabeceiras haverá um monte de filhos ? profetizou.
O mais velho apareceu-me embrulhado num cobertor:
- É um menino!
A segunda passou anos martelando no piano a mesma lição, até que trocou o instrumento por uma bicicleta. De vez em quando me liga a cobrar dos Estados Unidos.
O terceiro nasceu doentinho. Nem eu nem Ofélia tivemos coragem de jogá-lo escada a baixo. Hoje está ai, de barba na cara, querendo casar.
Os prepúcios que enterramos no jardim viraram árvores frondosas. Uma nuvem de mariposas circunda o pau dos meus meninos. Algum dinheiro sempre some da minha carteira, mas nada que os desabone. Na mesa da cozinha tem sempre um fazendo o dever de casa: ca co cu. Para que tanto filho, meu Deus?
No púbis das meninas, uma penugem rala ao redor da rosa cor de sangue. Como sangram essas meninas!
- Não mexa no botão da rosa.
Com dedos engordurados, desmancho o frango pelas juntas. Deus também desfaria a criação se previsse o resultado.
- Quando subir não esqueça de me trazer um copo d?água. Quando descer apague a luz. Quando sair bata a porta. Quando entrar limpe os pés. Quando arrotar peça desculpas. Quando mijar levante a tampa da privada. Quando trepar goze. Quando gozar, gema, bem molinha pra comer com pão.
Abro a porta da garagem e tiro o carro em ponto morto. Se Ofélia acordar, vai querer saber aonde estou indo. Eu lhe direi que vou devolver o filme à locadora. Duvido que ela entenda a metáfora. Amanhã me encontram numa rua deserta com uma bala na cabeça. Estou levando os meus óculos. Sem eles, Ofélia não lerá uma palavra do bilhete que deixei sobre o criado-mudo.


Moral da história: não devemos nos acomodar com nossos poetas preferidos. Não podemos nos transformar em velhos sisudos e rabugentos que ficam relendo livros e autores e dizendo no-meu-tempo-era-melhor. A vida pode ser uma porcaria, mas há poetas. Isso não podemos negar. Aí está a Ivana que não me deixa mentir.



esse eu quero comprar

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